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sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

O sexto Filho de Vergilio Ferreira

Literatura e Deficiência

O “Sexto Filho” de Vergílio Ferreira

E um dia o “Rolhas chegara a afirmar que isto da pessoa ter um defeito, às vezes até era um bem, por se arranjar melhor a vida”.
O Rolhas é o pai de “O Sexto Filho”, personagem do conto de Vergílio Ferreira. O conto traz-nos à memória considerações pertinentes e de denúncia, uma visão da deficiência.
O nascimento do Sexto Filho veio acrescentar, à mesa da pobreza da família do Rolhas, mais uma boca para a fome.
O sexto filho do Rolhas tinha a “perna em gancho, a balouçar, como suspensa por cordéis”. Entre os garotos da sua idade era o “aleijado”. Quando “precisavam de o insultar, acharam que o mais prático era chamá-lo pura e simplesmente por «coixana»”.
A deficiência do filho foi aproveitada pelo Rolhas para o sustento da família numerosa. A deficiência foi vista como a mina de ouro, o Brasil, a leira que daria o pão à família.
Com a deficiência do filho, “Rolhas tentou a sorte numa romaria lá da aldeia, exibindo a perna do garoto”. Para surpresa sua, verificou que, em vez de o ajudarem, ainda por cima lhe atiravam insultos”. Na aldeia, a deficiência do Sexto Filho não fez pão. Santos na terra não fazem milagres.
O projecto do Rolhas tornou-se global. Porque na aldeia não encontrou a solidariedade esperada, “contratou o aluguer de um burro, amarrou-lhe o filho aleijado à albarda e partiu”. A perna em gancho do filho tinha que fazer dinheiro.
Partiu para um mundo novo e desconhecido, para lá das grandes serras, entre gentes várias. Pai e filho, feito instrumento, dormiram pelos currais e cães vieram ladra-lhes aos caminhos. Com o filho aleijado pelos caminhos da esmola, a infelicidade do Rolhas era a rebeldia do filho, que “nem sempre tomava a sério a sua profissão, pois muitas vezes saltava da carreira dos aleijados, nas romarias, e corria atrás dos garotos à procura das canas dos foguetes.”
O aleijado tinha habilidades que hoje seriam aproveitadas em provas desportivas para deficientes. É que o sexto filho do Rolhas era possuidor de “incrível ligeireza, circulava por entre as pernas dos homens, apoiando-se nas mãos e na perna sã”. Rebeldias que eram tratadas com “surras para o pôr de novo no seu lugar”, na fila dos aleijados que pediam pelas feiras e pelas romarias.
O primeiro regresso à aldeia, depois de tempos a exibir pelo mundo a deficiência do Sexto Filho, foi um êxito. A mulher do Rolhas, “antes mesmo de beijar o pequeno, reparou nas patas do burro, que vergavam com a carga”. À custa da deficiência, Rolhas sentia-se triunfante com a fartura de algumas romarias.
Em casa, o rapaz sentiu-se de folga na profissão e com “as muletas que o pai lhe comprara numa feira”, vingou-se da “sua condição de aleijado, fazendo tudo o que os outros garotos faziam, jogando o pião, correndo com o arco, saltando quintais, ao ponto de o pai pensar em pô-lo a trabalhar num circo”.
“Houve grande alegria entre os miúdos da aldeia, porque nunca se tinha visto uma pessoa jogar todos os jogos com muletas. Todos queriam ver como era a mazela, mas o Sexto Filho “só a alguns mais íntimos deixava apalpar a perna, examinar como ela se curvava em gancho e balouçá-la como um pêndulo”. Era uma “raridade que atraía a atenção das pessoas crescidas e de certo respeito”.
Os garotos habituaram-se, lá na aldeia, ao aleijado e “passaram a tratá-lo de igual para igual”, sem discriminação, como agora se recomenda.
Numa das saídas da profissão, exibindo a deficiência para ganhar o pão para a família, o Rolhas e o Sexto Filho, andaram por muito tempo e por muito longe, foram vistos na Guarda, nas feiras de Trancoso e em Coimbra.
O Sexto Filho crescia e tomava consciência. A deficiência não é para exibir. A esmola não pode ser o meio de subsistência de um deficiente.
As saídas pelos mundos da esmola começaram a trazer de regresso à aldeia um burro de patas direitas, pela escassez da colheita.
O sexto filho do Rolhas acordou e fez-se um revoltado. Pai e mãe “fechavam-no cautelosamente na loja”. A revolta cresceu e o aleijado, aproveitando um descuido na vigilância, fugiu e desapareceu.
Quando voltou à aldeia, trazia a revolta completa para saber a verdade e fazer a vingança.
Um dia, na terra, encontrou o «endireita». O filho do Rolhas atirou-lhe: “se ando nesta vida, a você o devo”.
O «endireita» recusou a acusação e respondeu-lhe que se ficou aleijado, não foi por sua incúria.
A revolta do Sexto Filho era tanta que lhe “corria baba pelos cantos da boca, deitava lume pelos olhos”. O «endireita» procurou levar o caso com prudência, explicando com detalhes a operação da perna. E rematou: “Mas fica sabendo que havia quem quisesse que ficasses aleijado. Ficaste mesmo, mas eu fiz o que pude”.
Quando era criança, num trambolhão, ficou com o membro partido ou deslocado. O «endireita», quando lhe apalpou a perna, coçou o cachaço, hesitando. O Rolhas, pai do rapaz, viu na perna o instrumento para ganhar o pão para a família. Mandou a mulher para casa para não ser impedimento do seu projecto, abeirou-se do «endireita» enquanto o filho se perdia num berreiro e segredou-lhe “coisas em voz baixa ao ouvido”. O «endireita» recusou: “- Rolhas, isso é crime”.
Então “o Rolhas procurou explicar-lhe melhor. Falou longamente de si e da sua miséria, ergueu várias vezes os ombros em desalento. Mas o «endireita», teimoso, não se dava por vencido. Achava que era crime”.
“No entanto, ou porque a lógica do Rolhas submetesse o «endireita», ou porque o «endireita» não soubesse fazer melhor, o Sexto Filho ficou mesmo de perna em gancho, a balouçar, como suspensa por cordéis”.
Imediatamente, “Rolhas tentou a sorte numa romaria lá da aldeia, exibindo a perna do garoto”.
Ainda há deficientes que andam pelas ruas da vida mostrando a deficiência, como profissão.
O sexto filho do Rolhas foi tomado pela revolta que fez vingança da deficiência.
Tarda em chegar a revolta contra esta organização social que nega aos deficientes uma pensão digna e as condições que os libertem das ruas da cidade, exibindo deficiências para sustento.
Interessante, agradável e educativa a leitura do conto de Vergílio Ferreira, “O Sexto Filho”, no rescaldo do Ano Europeu das Pessoas com Deficiência. Recomenda-se.

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